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POR QUE NOSSAS MEMÓRIAS NÃO SÃO PROVAS EM CASOS UFOLÓGICOS?


Jochen Ickinger é um nome conhecido dentro da pesquisa ufológica, especialmente nos círculos ligados à Gesellschaft für Anomalistik (Sociedade para a Anomalística), na Alemanha. Ao longo de sua carreira, ele se destacou por seu rigor metodológico e ceticismo construtivo, oferecendo uma abordagem crítica e científica para fenômenos anômalos — com ênfase especial no fenômeno OVNI. Embora não seja uma figura midiática, Ickinger é respeitado por seus pares como alguém que busca elevar o padrão investigativo nesse campo muitas vezes marcado por especulações desenfreadas e falta de rigor.

Além de artigos técnicos e estudos de caso, Ickinger é também autor do trabalho metodológico "X-Faktor UFO-Zeuge", focado na condução de entrevistas com testemunhas de avistamentos. Sua reputação se consolidou como a de um pesquisador que não rejeita os relatos de antemão, mas que insiste em um exame profundo da forma como a informação é adquirida e processada. Isso o coloca numa posição crítica dentro da ufologia, onde muitos ainda se apegam cegamente à credibilidade subjetiva das testemunhas.


O artigo e suas implicações

O ensaio "Memories Are not Documentaries: The Weakest Link in the Chain of UFO Evidence" é uma análise contundente e detalhada dos limites da memória humana como instrumento de evidência no estudo dos OVNIs. Publicado originalmente na Zeitschrift für Anomalistik, o artigo apresenta um robusto levantamento teórico e empírico que desmistifica a confiabilidade dos testemunhos oculares, sem desprezá-los por completo.

A proposta central do texto é clara: testemunhos humanos não são registros objetivos da realidade, mas sim interpretações pessoais afetadas por múltiplos fatores fisiológicos, psicológicos, sociais e metodológicos. Ao abordar os principais pontos de distorção da percepção, memória e reprodução dos relatos, Ickinger alerta sobre os perigos de se construir teorias grandiosas sobre extraterrestres com base exclusiva em depoimentos, por mais sinceros que pareçam.

As implicações desse trabalho são profundas. Se levado a sério, ele exige uma revisão completa dos critérios de validação utilizados em investigações ufológicas. Além disso, ele chama atenção para a necessidade de registros objetivos e métodos científicos, como sensores e dados reprodutíveis — algo que diversos cientistas já vêm defendendo.


A percepção como um processo subjetivo

Ickinger inicia sua análise destacando que a percepção não é um simples espelho da realidade. Pelo contrário, ela envolve um processo interativo entre estímulos externos (processo “bottom-up”) e interpretações internas (processo “top-down”). Isso significa que o que percebemos é, em grande parte, moldado por nossas expectativas, experiências prévias e conhecimento do mundo.


Ele cita, por exemplo, o efeito de priming, onde expectativas inconscientes moldam nossa interpretação do que estamos vendo. Quando uma pessoa já acredita em discos voadores, ela pode interpretar luzes no céu como espaçonaves mesmo sem dados objetivos que sustentem essa conclusão. Ickinger ilustra isso com o caso dos triângulos voadores, em que testemunhas relatam naves com base apenas na disposição das luzes — um fenômeno típico das leis da Gestalt.

Além disso, fatores como idade, condições físicas e emocionais, e a situação ambiental (noite, janela, movimento) influenciam fortemente o que se vê. Emoções intensas, especialmente medo ou excitação, tendem a prejudicar a percepção ao invés de aguçá-la. Como diz o autor, “o estresse tem um impacto dramaticamente negativo na precisão da memória da testemunha ocular”.


A memória é fluida e vulnerável

Depois da percepção inicial, a informação captada entra na memória — e é aí que começa outro tipo de distorção. Ickinger mostra que a memória não é um arquivo imutável, mas uma reconstrução contínua sujeita ao tempo e à sugestão. O simples passar dos dias já é suficiente para que detalhes se percam ou se alterem drasticamente.


O autor aborda dois fatores centrais: o esquecimento e a sugestão.

O esquecimento segue uma “curva de esquecimento” não-linear, que reduz drasticamente a fidelidade das lembranças nos primeiros dias após o evento.

Já a sugestão ocorre quando o indivíduo incorpora informações novas — vindas de conversas, da mídia ou de outras testemunhas — e as mistura com o que viu originalmente, acreditando que são lembranças autênticas.

Isso é especialmente grave quando há múltiplas testemunhas, pois a chamada conformidade da memória leva os indivíduos a reconstruírem suas lembranças em torno de um “consenso grupal”. Como o autor afirma, “a memória de um único testemunho passará a refletir a de todos os participantes”. O resultado são lembranças cada vez mais distantes do evento real.


O desafio da entrevista com a testemunha

A forma como se conduz uma entrevista tem enorme influência sobre o que será lembrado e relatado. Ickinger alerta que perguntas mal formuladas, ou uma postura "sugeridora" do entrevistador, podem introduzir falsas informações ou induzir a reconstruções equivocadas.


Mesmo que a testemunha esteja tentando ser honesta, ela pode ser levada a “preencher lacunas” com base em suposições, estereótipos ou experiências passadas. Isso ocorre especialmente quando o entrevistador insiste em detalhes que a pessoa não recorda com clareza — levando-a a “chutar” respostas sem perceber.

A melhor técnica, segundo o autor, é a entrevista cognitiva. Nela, o testemunho começa com um relato livre, sem interrupções, permitindo que o entrevistado mergulhe no estado emocional do evento e reconstrua a cena de forma mais autêntica. Só depois vêm as perguntas abertas, seguidas de uma entrevista detalhada e de um questionário. Esse protocolo reduz erros e revela contradições potenciais.


O papel ambíguo dos desenhos

É comum pedir que testemunhas façam desenhos do objeto avistado. À primeira vista, isso parece fornecer um dado mais visual e “objetivo”. Mas Ickinger mostra que os desenhos são tão subjetivos e influenciáveis quanto os relatos verbais.


Experimentos realizados por grupos ufológicos mostraram que pessoas desenham de forma muito diversa um mesmo estímulo, mesmo quando esse foi mostrado por apenas alguns segundos. Isso também ocorre em casos reais de avistamentos: um mesmo objeto é retratado de formas completamente diferentes por testemunhas distintas. Isso revela o quanto a percepção e a memória distorcem até mesmo o formato do que foi visto.

Desenhos feitos com a ajuda do investigador, por mais bem-intencionados que sejam, também devem ser vistos com desconfiança. A única situação em que um desenho pode ser realmente útil é quando é feito imediatamente após o avistamento e antes de qualquer conversa ou interpretação. Mesmo assim, é apenas um indicativo, não uma evidência sólida.


Convicção não é sinônimo de veracidade

Um ponto final de grande importância discutido por Ickinger é a diferença entre convicção subjetiva e veracidade objetiva. Muitas vezes, a força com que uma testemunha afirma “saber exatamente o que viu” é tomada como evidência de que sua memória é fiel. No entanto, a psicologia mostra que o oposto pode ser verdadeiro.


Testemunhas muito confiantes estão mais sujeitas a se iludir com a completude de sua lembrança, enquanto aquelas que admitem dúvidas ou lacunas são, paradoxalmente, mais confiáveis. O cérebro, segundo Ickinger, “preenche lacunas com pensamentos e estereótipos”, fazendo com que o relato se torne uma construção ilusória — mas sinceramente acreditada.

Assim, o autor conclui que mesmo os testemunhos mais honestos e coerentes não podem, sozinhos, servir de base para inferências sobre a natureza dos OVNIs. É necessário evidência objetiva, verificável e reproduzível.


Concluindo...

Jochen Ickinger desmonta, com firmeza e sobriedade, a ideia de que testemunhos oculares são o “coração” confiável da pesquisa ufológica. Seu ensaio demonstra que percepção, memória e relato são processos frágeis e sujeitos a inúmeras distorções — muitas vezes sem que o próprio observador perceba. Isso não quer dizer que testemunhas devam ser ignoradas, mas sim que seus relatos devem ser entendidos como pontos de partida, e não como evidência conclusiva.

Seu trabalho se alinha com uma crescente demanda por profissionalização dentro da ufologia: mais ciência, mais método, mais ceticismo saudável. Em tempos de fascínio popular renovado pelo fenômeno OVNI, especialmente após os vídeos da Marinha dos EUA, lembrar que “memórias não são documentários” é mais importante do que nunca.

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